Padecimentos de uma Virgem (excerto)

16-04-2015 01:34

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A COMISSÃO DE FESTAS

No sábado, às três da tarde, reuniu-se a Comissão de Festas.

O primeiro a chegar foi o Hilário, vinha cheio da sua função de Presidente, transpirando responsabilidade. Entrou no adro, respirou fundo, enxugou a testa com um lenço, dirigiu-se à janela frontal da capela, benzeu-se e espreitou a Virgem. Depois, tirou do bolso do casaco a chave do templo, abriu a porta principal, ultrapassou a soleira de granito, fez uma vénia em direção ao altar e observou o estado de conservação do edifício.

 Desde que fora empossado na sua tarefa de chefia não tinha sossego, perdera, devido à enorme atividade mental desenvolvida e ao excesso de transpiração daí decorrente, os últimos cabelos que lhe restavam na parte superior da cabeça. Monologava pelos caminhos, discutindo acaloradamente consigo próprio o programa das festividades e calculava, com precisão, o saldo que sobreviveria aos gastos e receitas desse ano. Não dormia, antes se encomendava à Virgem, rogando-lhe que tocasse com a sua mão benéfica nos corpos de todos os necessitados, de modo a que estes, agradecidos, atulhassem o seu tesouro com ofertas e proporcionassem à Comissão uma boa receita, pedia mesmo à Imaculada que levasse os seus favores, numa elástica competência, aos fervorosos emigrantes, sempre tão pródigos em oferendas, sempre tão crentes e piedosos, para que estes experimentassem o louvável desejo da visita anual e do agradecimento.

Nos últimos anos a festa progredira espetacularmente. As intervenções milagrosas da Virgem tinham centuplicado e faziam acorrer ao adro multidões cada vez mais compactas e dádivas cada vez mais pródigas. Por isso os festeiros arriscavam, de ano para ano, gastos cada vez mais impressionantes, de modo a que a interação que parecia estabelecer-se entre os gastos e as receitas elevasse aos píncaros o culto e a Comissão.

O Hilário fez mais uma vénia em direção ao altar, dirigiu-se à porta e saiu para o adro, deu quatro passos em direção ao palanque e ficou a olhá-lo, embevecido. Ali estava ele, dominando o vale com a dignidade de um monumento. O Hilário calara os seus críticos com aquela obra, tão maravilhosa quanto oportuna, que tinha inscritos, numa placa metálica, o seu nome e o dos restantes membros da Comissão. Agora o povo podia assistir, ao sol ou à chuva, sem arredar pé, à evolução dos dotes mágicos com que os artistas abrilhantavam as cerimónias e comoviam as almas.

Suando pelo esforço das cogitações, avançou em triunfo para o coreto de cimento, subiu os degraus e fez pose no centro do palco, enquanto meia dúzia de moscas lhe esquadrinhavam a careca. Foi nessa pose que o vieram encontrar os restantes membros da Comissão.

O Hilário iniciou a reunião com um pequeno discurso premeditado, depois tirou do bolso direito do casaco algumas folhas de papel, desdobrou-as, alisou-as com o punho, sobre o joelho, e exclamou:

— Eis aqui o nosso Programa, só falta a tipografia!

Os outros bateram palmas. Uma folha com o projeto da festa passou por todos, ritmada por elogios. Depois, cada um comunicou a evolução das tarefas que eram da sua responsabilidade. O Cachada, cunhado do Hilário, tinha a seu cargo o fogo-de-artifício, os foguetes viriam do fogueteiro de Viana que, como toda a gente sabia, tinha as melhores canas, a pólvora mais forte e as cores mais lindas, quando os incomparáveis foguetes subiam nos ares e desabrochavam, era como se jardins de estrelas e de flores descessem do paraíso sobre a terra. O Hilário ficou satisfeito mas, como o Cachada tinha recebido, por nascimento, um ampliador na cabeça, quis saber todos os pormenores, até ter a certeza de que ele, desta vez, se restringira aos simples limites da realidade. Quem não ficou descansada foi a Senhora dos Remédios, porque a artilharia do fogueteiro de Viana era detentora dos estampidos mais exagerados que Ela conhecia, os estrondos da sua pólvora atordoavam os animais, moviam os telhados, rachavam as paredes e incomodavam sobremaneira o seu recolhimento. Porque teria o Seu divino Filho permitido que os homens conhecessem a química da pólvora e, mais ainda, como é que não ficava incomodado, lá no alto, com os estouros daquele fogueteiro insuportável.

O Inácio Fontão informou que o responsável pela aparelhagem sonora seria, como no ano anterior, o Estrocegado, que possuía a melhor seleção de músicas e uma habilidade inegável para resolver os problemas de distorção dos altifalantes. No interior da capela a Virgem moveu a cabeça, descontente, todos os anos o Estrocegado vinha desassossegar o templo, trazia aquela maquinaria infernal, um incrível emaranhado de fios que se estendia por tudo quanto era sítio, e os filhos, que o ajudavam nas tarefas mais simples, e de tudo isto resultava uma barulheira incrível, toda isenta de sequências harmónicas e melódicas, que viajava da sonoridade mais rouca até ao mais inatingível dos agudos, numa velocidade estonteante.

O João da Tenenta já resolvera tudo com o rancho folclórico, que viria cheio de cores, joias, concertinas, saltos e rodopios, as solistas cantavam como ninguém, numa afinação muito superior à que se ouvia na rádio.

O Evaristo falou sobre a contratação da banda de música, acompanhamento eterno e essencial das procissões, fôlego indispensável das festividades. A tradição dançava nos assopros da filarmónica e espalhava-se, introduzindo-se, pelos ouvidos, nas existências do povo.

De muitos outros aspetos trataram os membros da Comissão, reunidos naquela tarde do vigésimo nono dia antes do culto; do arranjo da capela, da decoração do cruzeiro, dos andores, da iluminação do adro e da calçada, do palco para o rancho folclórico, dos pregadores, das diversões, das tascas e das doceiras. A Virgem escutou com atenção e tristeza. O Seu Filho habitava nas brilhantes paisagens do reino celeste, na companhia do Pedro, do Tomé, do João e até do Judas, que o traíra. Ele abandonara há muito os atalhos do mundo, o Seu caminho eram as estradas do Céu, ser homem fora para Ele apenas um momento redentor. Mas Ela, que lhe dera a existência humana, que tudo sofrera no Seu olhar de mãe, continuava ali, nas mãos do Hilário e de todos os outros, e o Seu sacrifício não tinha limites. E então, enquanto olhava Hilário, atormentado pelas moscas, a dar palmadas na careca luzidia, a Virgem permitiu-se ter um pensamento menos puro e agradeceu aos insetos, que para aquela gente incluíam muitas das outras criaturas que o Seu amado Filho criara sem esqueleto, fossem elas voadoras, rastejantes ou saltonas. Na Sua infinita complacência, censurou a crueldade com que os animais eram perseguidos e quase exterminados e ficou satisfeita de os ver importunar aquele festeiro, que mais uma vez procurava contentar-se à custa do Seu desassossego.