Catarina - extrato de PADECIMENTOS DE UMA VIRGEM

25-04-2014 01:14

CATARINA

 

Catarina tinha sido a moça mais linda do povoado. A sua figura celta, de cabelos dourados e longos e de caracóis rebeldes como o vento, o corpo harmonioso, o busto perfeito, os olhos negros e travessos, a pele suave e rosada, o sorriso atrevido, enfim, tudo fazia dela um ser propício a servir de rastilho para as labaredas da paixão.

Os rapazes andavam à sua volta como insetos fascinados. Escondiam-se nas esquinas para a ver passar, tentavam chegar-se o mais possível à tepidez do seu corpo, faziam preces à Senhora dos Remédios, que se acomodava humildemente num nicho do altar da capela, na companhia das aranhas e das moscas.

Da janela da sua casa, que dava para o adro, Catarina via os rapazes a rondarem os muros e a acenarem-lhe e a pedirem à Virgem que intercedesse por eles e sorria, com uma mistura de divertimento e de serenidade, vendo-os como personagens de histórias engraçadas mas que nada tinham a ver com o seu mundo. Por isso, quando sentia o caminho livre, ia também ela rogar preces à Senhora, para que acalmasse os corações mais afogueados dos rapazes.

À sua porta vieram plantar-se os pretendentes. Chegaram primeiro os criadores de gado, com pescoços de touro e odor a sebo, depois os filhos dos mais ricos lavradores, com o peito cheio de colheitas de milho, o estômago a abarrotar pipas de vinho e as vozes curtidas pela aguardente, por último alguns jano­tas da cidade, que traziam sobre o corpo a última fatiota da moda e na carteira mil promessas de conforto e de civilização. Mas ela a todos repeliu, pois já escolhera há muito tempo o seu amor.

António, assim se chamava ele, gostava de olhar para ela do alto das árvores. Fazia-o desde que eram miúdos, ficava horas entre os ramos, a observar o que fazia, e quando ela estava dentro de casa e afastada da janela, ele começava a cantar para que aparecesse. Também lhe escrevia cartas, mesmo antes de saber escrever, colocando-as num buraco secreto do muro do quintal.

No início, os papéis tinham apenas alguns rabiscos, depois surgiram letras, desenhos, frases, histórias e poemas. Ao fim da tarde, ela corria para o esconderijo secreto, apanhava as cartas e guardava-as diretamente no coração.

No dia em que se casaram, ninguém duvidou de que Deus criara finalmente um par feliz e, durante os primeiros anos, eles ultrapassaram todos os vaticínios, chegaram mesmo a surpreender a Senhora dos Remédios, que desconhecia a possibilidade de haver tanto amor naquela aldeia.

Um dia, porém, tudo se transformou.

O marido, que sempre tive­ra a nostalgia de outras terras e de outras moedas, partiu para a Argentina, numa tarde de Outono. Deixou-a chorosa, destroçada com a perspetiva da ausência, com três filhos nos braços e outro ainda por nascer. Rogou-lhe desesperadamente que não fosse, que não cruzasse o grande mar do esquecimento, que não a deixasse na medonha terra da solidão. Mas ele não resistiu ao apelo da viagem e perdeu-se na distância. E, contrariando às mil cartas que lhe escrevera e que ela guardava no coração, foi­-se esquecendo dela e do seu grande amor.

Catarina esperou anos e mais anos, exposta à solidão do mundo, com um grande temor das noites solitárias. Primeiro procurou a companhia da Virgem, pedindo-lhe, entre soluços, que lhe trouxesse o marido de volta, Como as suas preces não foram atendidas, começou a descer frequentemente à penumbra da adega, sub­limando frustração que a aturdia, e as suas permanências entre as pipas tornaram-se cada vez mais prolongadas.

No dia em que alguém lhe disse que o seu marido arranjara uma amante e nunca mais voltaria, desceu à adega e embebedou-se, queimou tudo o que dele restava e perseguiu os filhos pelas sombras da noite, até que os vizinhos acorreram e os levaram para as suas casas.

Os filhos foram cres­cendo com os restos da comida alheia, desprezaram-na, ela ficou sozinha na sombra da adega. Nas noites de tempestade saía para a rua com uma candeia nas mãos. O vento enrolava a chama em milhões de abraços mortíferos, mas a candeia nunca se apagava, então Catarina tocava a sineta da capela e lançava do adro os seus gritos dolorosos, que se esfarrapavam nos bailados do vento e se infiltravam pelas frinchas das telhas "Sou eu, sou eu, a Catarina à espera da morte". E às vezes as borrascas amainavam, comovidas pe­lo drama de tanta solidão.

Aos setenta anos o marido voltou, por entre um clarão de luxo. Trazia grandes malas de couro, um bigode frondoso, um casaco de linho e um ar sorridente. Toda a gente o achou mais novo, como se os anos não lhe pesassem.

Apareceram todos para recebê-lo, vieram os empreiteiros para o aconselhar a mudar a casa, chegaram os vizi­nhos para dar-lhe a conhecer as despesas que tinham tido com os filhos, vie­ram os filhos saber que lucro teriam com a vinda do pai, veio até o velho Reitor da paróquia, na esperança de ganhar mais um crente e algu­mas moedas para a igreja. O velho olhou-os a todos com um sorri­so na face, pois vinha de uma terra onde era necessário sorrir para tudo, até para a própria morte. Quando Catarina subiu da adega e se deixou ficar à distância, olhando-o com ódio, ele lembrou-se de que ela existia e apiedou-se dela, mas não deixou de sorrir.

Nessa noite, enquanto o marido dormia, Catarina entrou no quarto. Esperava aquele sono há séculos. Tantos anos tinha pensado na vingan­ça, tantas noites tinha esperado aquela pulsão inadiável! Agora, por entre as brumas da memória e do álcool, o ódio ao esposo confundia-se já com o ódio ao invasor. Ergueu mecanicamente a mão que segurava a machada e desferiu o golpe com todas as forças dos seus músculos flácidos. O homem pressentiu o ataque e mexeu -se, a lâmina cortou-lhe a carne do braço até ao osso.

O velho não morreu, regressou do hospital com um braço ao pei­to e a cabeça cheia de projectos, mandou construir uma casa nova, repartiu uma parte da sua fortuna pelos filhos, doou um terreno à Senhora dos Remédios, para que lhe pudessem alargar o adro da capela, custeou sozinho um telhado novo para a igreja. "Um bom cristão", pregou o velho Reitor, num sermão que lhe dedicou por inteiro, "Um bom exemplo!" murmurou o povo, e quando ele fechou as portas da adega, para que a Catarina não se embebedasse mais, as mulheres consideraram-no até um bom marido.

Sem a força das pipas, Catarina passou a arrastar-se pelo adro da capela, monologando em frente da Virgem, tropeçando por entre os hábitos de uma bebedeira de quarenta anos. As cartas que tinha guardado no coração estavam desfeitas há muito e transformadas num ácido que lhe envenenava o sangue. António contratou uma empregada para tratar da casa, dos animais e, por último, de Catarina. Com o passar do tempo, a empregada, que ainda era nova, começou a tratar melhor o patrão e a não lhe sobrar tempo para as outras coisas. Catarina caiu no desmazelo, deixou de se lavar, dormitava pelos cantos da casa e, quando conseguia iludir a vigilância da empregada, perdia-se pelos caminhos. Nunca falava com o marido e, das poucas vezes que se cruzava com ele, apenas conseguia mostrar-lhe um ódio tão denso que já se tornara impessoal, não era dirigido apenas a ele mas a tudo e todos, ao mundo e a ela própria.

Enquanto o marido pas­seava o frondoso bigode pela aldeia, cumprimentando todos, falando sabiamente, relatando viagens, pagando rodadas de bebida aos homens e oferecendo bolinhos às mulheres, Catarina alheava-se dele, escapava à vigilância da empregada e ia gemendo atrás dos rapazes que brincavam no terreiro do adro: "Vem cá meu menino, vem cá, dá-me um beijinho".