CAPÍTULO 5

03-07-2019 01:41

 

 

CAPÍTULO 5

 

o vietnamita

a trolha e a talocha educativas

o mundo está cheio de gente certinha

liga a serpentina se queres mais sexo

 

Amália foi viver em casa da tia e frequentou um dos liceus nacionais de Lisboa.

A taxa de frequência dos níveis de ensino acima do primeiro ciclo era muito reduzida, o que estava de acordo com a história de um país em que a educação sistemática nunca foi uma prioridade.

Desde os primórdios da nação que o ensino estava à espera, com uma paciência ilimitada, que os dirigentes políticos dessem conta da sua importância para o desenvolvimento do país e o bem-estar das populações. Uma aristocracia quase analfabeta, salvo honrosas exceções, dirigiu a vida pública durante centenas de anos. A Igreja, com as suas ordens religiosas, mitigava um pouco este défice trágico que, governo atrás de governo, regime atrás de regime, foi corroendo a capacidade de o país se adaptar à competição civilizacional.

O desleixo educativo foi apenas salpicado, aqui e ali, por irreverências pontuais, como a dos princípios do Liberalismo e as de alguns voluntariosos iluminados que, ao longo dos séculos, arriscaram contrariar o marasmo dos grupos dirigentes.

As escolas foram edificadas como capelas. A comunicação era unidirecional, cada mestre parecia imbuído do espírito divino e chapava valores e conhecimentos como o trolha atira argamassa às paredes para produzir um reboco que esconda as imperfeições, que lhes dê uma aparência mais digna e dificulte as infiltrações nas fissuras da má construção. A talocha da moral católica apostólica romana produzia o alisamento final, eliminando os desníveis comportamentais capazes de revelar inconformismo e curiosidade. Conhecer sim, mas apenas o que os mais velhos e sensatos já sabem. É bom saber apenas aquilo que não ameaça a estabilidade social e a permanência dos grupos influentes na engrenagem do poder.

Na sociedade ocidental, ensinar tornou-se um ofício de papagaios. As escolas e as universidades transformaram-se em gaiolas de aves palradoras, cuja exuberância vestia apenas as cores e os ornamentos do passado. Imitar, repetir e retocar eram os princípios básicos do saber. Estes conduziam diretamente à resposta certinha, ao juízo sensato e à preservação do estatuto. O preceito “se não tens a certeza, não digas, pois podes errar” é, porém, em termos de ensino, o anátema da castração. É o dogma de que só podemos ter a certeza sobre o que nos ensinaram. Deste modo de conceber a aprendizagem resulta o assassinato da curiosidade intelectual e o empolamento do medo de arriscar. A imposição do receio do erro é a maior arma do autoritarismo. “Responde apenas o que te disseram para responder, não és ninguém” é um ditame que pode também significar “mantem-te na posição social que te é permitida”. Foi por isto que o país definhou para um estado crónico de astenia cognitiva e comportamental.

Violeta pensava tudo isto e proclamava-o sem cessar. As salas de aula continuavam a ser espaços mortos onde as crianças e os adolescentes eram fechados, todos os dias, durante várias horas, para se submeterem à estrutura social e aprenderem, por condicionamento, a reproduzi-la, sem qualquer laivo de inovação.

Pássaros engaiolados! Os alunos eram isso mesmo, animais de circo, treinados para conseguirem a gratificação social através do sacrifício da criatividade, da pergunta e do erro.

— Tens uma coisa muito boa, que deves manter durante toda a vida — dizia ela à sobrinha — a capacidade de experimentares coisas, sem medo de errar. O mundo está cheio de gente certinha, filha. Mas é melhor errar cem vezes do que dar cem respostas que toda a gente dá.

Amália gostava da tia como não gostava de mais ninguém: sem nenhum sentimento de posse ou de jogo. Era uma afeição desinteressada, que não se fortalecia em nenhum objetivo nem definhava com qualquer frustração. Porém, embora gostasse sinceramente dela, não tinha nenhuma vontade de a imitar, de se identificar com a sua forma de ser, de a constituir como seu modelo comportamental.

Violeta repartia a sua atividade pela docência e pela arquitetura. Gostava de projetos arrojados, que privilegiavam a incidência da luz e respeitavam um vasto leque de orientações espirituais. Nos prédios saídos da sua criatividade existia um amplo conjunto de caraterísticas que, segundo as suas crenças, contribuíam claramente para desenvolver a adequação perfeita entre o indivíduo e o contexto, para estabelecer um equilíbrio dinâmico entre os moradores e toda a parafernália de seres e energias que povoavam os espaços e apenas eram percetíveis pelas almas escolhidas, sofredoras e atentas, como a dela. Esses entes agarravam-se às pessoas como as lapas, que se fixam nas rochas com as suas ventosas, resistindo às investidas permanentes do vaivém do mar salso e incansável. Porém, enquanto as lapas apenas se sustêm na pedra e lhe mudam a aparência superficial, os seres invisíveis carregam os corpos dos hospedeiros com uma energia que é facilmente absorvida pelas almas mediúnicas, como a dela.

Os entes podem ter carga negativa ou positiva, podem enfraquecer ou tornar mais forte a aura daqueles a quem se agregam. Violeta detetava claramente a presença desses seres quando se aproximava das pessoas para as cumprimentar e lhes tocava. Se a energia era negativa, a sensação de vómito tomava posse dela e fazia eclodir uma impressão de aperto, rejeição e náusea. Afastava-se rapidamente das pessoas que transportavam a companhia indesejada e, por isso, não chegava a vomitar, ficava-se pelas contrações musculares.

Uma das suas atividades preferidas era confecionar horóscopos. À maneira de Fernando Pessoa, que os fez às centenas para os amigos, para os seus heterónimos, para a nação e para muitos objetos metafísicos, Violeta gostava de divulgar a sua irreverência em relação às normas. Tal como o poeta dos óculos místicos, ela possuía um acreditar que se situava no limiar da fé e da estética. Tinha a força da crença e entregava-se a esta de corpo e alma, mas com a plena consciência de que a crença era construída, em cada momento, em função do prazer sensorial e espiritual que lhe proporcionava. Se a fé lhe dava felicidade, era boa e tinha de ser uma apologia da vontade. Por estas razões, Violeta elaborava horóscopos para tudo e todos: familiares, amigos, colegas, conhecidos pontuais, gatos, cães, edifícios e tudo o mais que a sua criatividade e imaginação lhe trouxessem ao espírito.

As relações entre pessoas e casas eram profundamente influenciadas pelo zodíaco. Os signos dos edifícios estavam determinados pelo nascimento destes, ou seja, pela data em que a sua construção ficava completa. Uma casa acabada de construir em princípios de novembro seria muito entusiasmante para alguém nascido em inícios de agosto.

— Esta casa potencia o amor e a sexualidade — dizia ela.

Dava, frequentemente, instruções escritas aos vendedores dos edifícios projetados por ela para indicarem, aos potenciais compradores, os signos que melhores condições teriam para os habitar. Porém, estas indicações raramente eram cumpridas, se é que alguma vez o foram.

— Isso que me dizes é seguro? — Perguntavam-lhe os amigos.

— Claro que é seguro, está mais do que provado. Se acreditarmos, acontece quase de certeza.

Estava sempre em movimento, aberta a novas experiências de todo o tipo.

Durante o tempo em que a sobrinha morou lá em casa, depois de ser expulsa do colégio, ela conheceu um jovem de ascendência vietnamita, que tinha vindo para Portugal como refugiado. Era um profundo conhecedor das técnicas reflexológicas associadas à terapia do corpo e do espírito, como as da utilização de agulhas. Ocorria nessa época o início da divulgação, em Portugal, de uma certa cultura do oriente, especialmente relacionada com a China e a Índia.

O homem chamava-se Châu. Era baixo e magro, mas a magreza ficava-lhe pelo pescoço, porque a cara era redonda e bochechuda, com umas faces coradas que faziam salientar os seus olhos semicerrados e brilhantes. Usava um bigode muito ralo, quase apenas um prenúncio, que contrastava, como um sombreado, com os dentes certinhos e brancos.

Violeta encontrou-o numa feira de livros usados, em Lisboa. Falou com ele cinco minutos, junto de uma banca esotérica, e apaixonou-se. Levou-o para casa e enrolou-se nele, como uma trepadeira que encontra apoio para crescer.

Châu fez da hospedeira uma cobaia da investigação experimental que estava a desenvolver, sobre o papel da face na deteção e terapia das disfunções do resto do corpo.

O rosto era, para ele, a zona onde se refletiam as diversas áreas e órgãos, no seu funcionamento sadio ou patológico. Na cara estavam, segundo a sua conjetura firme, os pontos correspondentes a todas as localizações do organismo. O nariz, por exemplo, correspondia à coluna vertebral e ao tronco, o queixo aos dedos dos pés, as narinas às nádegas. As vísceras e os sistemas fisiológicos eram também projetados na cara. Na testa encontrávamos o sistema digestivo, na zona inferior do rosto o aparelho circulatório…

Massajando, com as técnicas adequadas, os pontos da cara, que já podiam ser enumerados até aos duzentos e cuja quantidade aumentava rapidamente, Châu sentia-se capaz de amainar ou mesmo erradicar os desequilíbrios e os desprazeres orgânicos.

Os instrumentos que ele idealizara e que já conseguira construir, com a ajuda de algumas oficinas metalúrgicas, incluíam bolas com picos, pentes, martelinhos, rolos com estrias e agulhas. Os tamanhos e os metais eram vários. Tinha também algumas ferramentas de madeira. Cada instrumento servia uma função yn ou yang. Se era yn, tinha de aquecer e concentrar, se era yang, dispersava e arrefecia.

Violeta, além de se disponibilizar, com prazer, para que Châu experimentasse nela aquelas técnicas, convidou vários amigos para se sujeitarem ao mesmo.

Porém, numa das áreas da investigação exigiu que fosse apenas ela o objeto exclusivo de teste. Tratava-se do estudo que ele estava a desenvolver sobre os benefícios do arrefecimento no desempenho físico prolongado ou repetido. As evidências dessa investigação apontavam para a responsabilização do aquecimento do corpo pelo esgotamento físico. A utilização de uma técnica que permitisse arrefecer as zonas irrigadas por muitos vasos sanguíneos faria o corpo recuperar rapidamente do cansaço.

Para testar a validade do princípio de que o esfriamento faz reiniciar os sistemas que controlam o exercício da musculatura, Châu concebeu luvas especiais, feitas em malha de alumínio, que eram colocadas no congelador e serviam para arrefecer as palmas das mãos, duas das áreas que mais contribuem para diminuir o calor muscular.

Uma das atividades em que a luva revigorante mostrou rapidamente claros benefícios foi a do exercício amoroso. Violeta sempre gostara de uma boa dose de sexo e, por isso, recebeu com agrado e divertimento a proposta para realizar a experimentação sistemática do invento. Os dois repetiram vezes sem conta as sessões de teste para medir a pujança libidinosa e a capacidade de recuperação do cansaço.

Os resultados confirmaram rapidamente as expetativas do vietnamita. Em cerca de quatro minutos estava preparado para recuperar a atividade sexual, com o ímpeto do início. Da segunda para a terceira ronda o tempo de recuperação subia para apenas seis minutos, o que era manifestamente pouco para alguém como ele, que pela via normal apenas seria capaz de recuperar ao fim de duas ou três horas.

Violeta divertia-se com o engenho daquele espírito inventivo, que vivia quase inteiramente dedicado às suas pesquisas. Numa segunda fase o vietnamita criou cintas e slips, mas o seu uso revelou-se muito mais divertido, pelos arrepios e gritinhos que o contacto do material gelado produzia nas pernas e na barriga.

Amália ouvia os risos e os queixumes prazerosos da tia e começou a sentir despertar nela o desejo de possuir o vietnamita. Essa vontade não se deveu ao facto de o achar atraente, pois ele não possuía nenhuma caraterística sedutora para os seus critérios estéticos. Também não decorreu de um impulso para rivalizar com a tutora ou para lhe causar qualquer sofrimento. Foi, simplesmente, uma pulsão forte e quase impessoal, que pareceu emergir das profundezas da carne e transformar o asiático num simples objeto atestador de poder.

Como Violeta tinha o investigador aos serões, pois trabalhava de dia, Amália resolveu tê-lo durante as manhãs. Começou a faltar às aulas do último ano do liceu. Nesse verão fazia dezoito anos. Pensando nessa data, sentiu o desejo irresistível de se tornar adulta antes do tempo convencionado. Na sua cabeça, isso significava fazer o mesmo que a tia e experimentar as técnicas efusivas do hóspede da casa.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

CAPÍTULO 6

 

a traição

risadas, gemidos e gritinhos

as investidas de um touro asiático

a traição e o amor de Judas

 

Amália começou por se mostrar curiosa sobre a atividade lúdica que, todos os serões, inundava a casa com risadas, gemidos e gritinhos. Fez-se de ingénua, como se não fizesse a mínima ideia do que se tratava. Mas já tinha espreitado pela fechadura do quarto e lido alguns apontamentos em inglês que Châu deixara, esquecidos, num dos sofás da sala.

Naquela manhã decidiu avançar. Como aconteceria durante toda a sua vida, quando tomava uma decisão não existia impedimento capaz de demovê-la. Fixava-se nos objetivos como o predador se concentra nas presas, tudo o resto se torna irrelevante, apenas interessa a figura e o movimento. Nos predadores, qualquer que seja a espécie, os olhos avançaram para a frente do rosto, como se quisessem estar mais perto das presas. No caso de Amália, os olhos eram o seu corpo, era com este que sentia e via, era dele que brotava a intuição e a vontade para pensar e agir.

Depois de escutar a tia a fechar a porta da rua e a sair para dar aulas, a jovem deixou o quarto e foi-se deitar, apenas em cuecas, num dos sofás da sala, tapada com um lençol quase transparente, que deixava adivinhar as suas formas arredondadas e firmes, ainda com alguns resquícios pubertários mas, no geral, com um desenvolvimento perfeito da feminilidade.

Às dez Châu entrou na sala, como fazia todas as manhãs, prenhe da sua meticulosidade. Sentou-se na grande mesa redonda, que servia para as refeições e para o trabalho intelectual, e não reparou na rapariga. Só quando ela, propositadamente, assinalou a sua presença com o barulho de alguns movimentos do corpo é que ele tomou consciência de que não estava sozinho. Perguntou-lhe o que fazia ali, se estava a dormir. Ela fingiu que acordava com as perguntas dele. Tirou o lençol de cima do corpo e inundou, com a sua figura venusíaca, as pupilas dilatadas do vietnamita. Ele sentiu um esticão nos nervos da base do encéfalo e um formigueiro a ampliar-se no interior do crânio.

— Não me sinto bem, preciso de me levantar para ir à casa de banho. Ajuda-me, Châu!

Ele fez de conta que não a ouvia. Desviou os olhos e manteve-os fixos no bloco de apontamentos em que esmiuçava graficamente os pormenores das suas experimentações.

Ela continuou a provocar-lhe deliberadamente as pulsões, soerguendo-se, estirando-se, rodando o corpo, tocando com os dedos nos mamilos rosados e exuberantes…

O sangue do vietnamita começou a ferver, subiu caudalosamente até às têmporas e toldou-lhe a visão. Então ele levantou-se como um touro por entre a névoa, arrancou para o sofá com os olhos inchados pelo desejo e atirou-se a ela como um caçador tresloucado.

Quando ficou exaurido, Amália não o deixou repousar.

— Onde está a luva? Usa a luva.

Foram para a suíte, onde ele podia usar o instrumento para arrefecer o corpo.

O esfriamento que a luva causou, reiniciando a energia muscular, associou-se ao cheiro e à elasticidade do corpo adolescente de Amália e estimulou o asiático, até não existir nele qualquer resquício de potência libidinosa, até estarem consumidas todas as reservas energéticas. Deixou-se cair sobre a cama e ficou estirado, enquanto ela ia à casa de banho e tomava um duche.

Quando ela saiu, ele perguntou-lhe, na sua linguagem mesclada e difícil de acompanhar, quando é que deixara de ser virgem.

— Há muito tempo. Nem sei se alguma vez o fui — respondeu a rapariga.

Caindo em si e tomando consciência do que tinha feito e das implicações que isso podia ter, ele continuou a questioná-la sobre as suas experiências amorosas. Amália sossegou-o. Sabia muito bem o que fazer, a relação sexual estava longe de ser uma coisa nova para ela.

As manhãs seguintes passaram a desenrolar-se de forma previsível, seguindo o modelo da primeira. Ela não ia ao liceu, levantava-se quando a tia fechava a porta de saída para trabalhar, deitava-se nua no sofá, apenas coberta com um lençol, esperando que o amante de Violeta entrasse na sala para trabalhar e se fingisse surpreendido com a sua presença.

Porém, embora o papel da luva não pudesse ser menosprezado, o vietnamita não conseguia ter robustez suficiente para aguentar as solicitações das manhãs e das noites. Os serões foram os mais afetados. Conquanto ele se esforçasse por ludibriar a perceção de Violeta, esta sentiu claramente a descontinuidade do desempenho e a diminuição do entusiasmo no esforço experimentador. Como todas as mulheres, estranhou, subiu por ela uma intuição desagradável. Numa primeira fase julgou ser a culpada, talvez o interesse dele estivesse a desvanecer-se com a passagem do tempo. Depois reparou no grau de cumplicidade que existia entre o companheiro e a sobrinha. Um dia, quando estes se empenhavam na experimentação da conjetura sobre os benefícios regenerativos do arrefecimento do corpo, Violeta entrou em casa e surpreendeu-os na sua própria suíte.

O sentimento de traição irrompe fundido com o de culpa. Faz esmorecer o indivíduo que o acolhe e pode levá-lo à negação de si mesmo, à auto depreciação total, até ao suicídio. Dividido pelo conflito de aproximação e afastamento, o cérebro humano deixa-se conquistar pelo oceano ácido da culpa e renega os objetivos alcançados e os interesses satisfeitos. Vive ruminantemente a negação do que lhe deu prazer e o empolgou. O outro, que foi atirado do seu pedestal e transformado em simples meio ou circunstância, voltou a erguer-se, triunfante, no seu estatuto pleno. Porém, o seu ressurgimento no espírito do traidor inverte os polos da desvalorização: agora é o traído que, sem o saber, transforma o outro em coisa indigna, em matéria sem valor. Talvez isto tenha acontecido com Judas, se é que não realizou o seu ato por amor, julgando que este iria permitir que o Nazareno mostrasse aos romanos todo o seu poder divino.

Violeta sentiu-se traída e Châu sentiu-se traidor, mas Amália não conseguiu desenvolver qualquer sentimento relacionado com a traição ou a culpa. Para ela o mundo era um jogo, um espaço de oportunidades que não podiam ser desperdiçadas. Assim o exigia a liberdade individual. Aceitava aquilo que a realidade lhe oferecia, sem receios ou recriminações. Era claramente dotada de uma personalidade estética. As sensações constituíam a única voragem capaz de a sorver e de a fazer redemoinhar no fluxo centrifugador do desejo. Possuía mecanismos morais reguladores do comportamento, automatismos interiorizados de avaliação das ações que condicionavam o ego e a concretização dos impulsos. Se quisermos falar em termos freudianos, o superego exercia a sua influência, mas apenas em relação às opções gerais sobre o agir. Os automatismos de apreciação das condutas não deixavam de estar presentes, mas apenas como campo de fundo, como referência esvaecida. Sempre que o impulso motivacional era forte, o superego encolhia-se, afastava-se para um canto da mente e deixava a estética a comandar as decisões. Era um vigilante fraco e desleixado.

Depois de concretizar as traições, fosse qual fosse o prejuízo para aqueles que eram traídos, Amália nunca sentia culpa nem remorsos. O que estava feito não podia ser mudado e, por isso, ela aceitava-o plenamente, mesmo que tivesse consequências nefastas para os outros e para si própria.

Châu, pelo contrário, não conseguiu aguentar os olhos desiludidos e recriminadores de Violeta e partiu, poucos dias depois. Deixou um bilhete a agradecer, a lamentar o sucedido e a garantir que sempre a amaria. Abandonou a casa de manhã, enquanto Amália dormia, sem se despedir dela, sem lhe demonstrar qualquer afeto. Desapareceu sem deixar rasto. Algum tempo depois Violeta sentiu que o amor por ele ainda não se tinha esgotado e procurou-o afincadamente. Nunca o encontrou ou soube informações sobre ele. Segundo alguns, tinha partido em direção ao oriente, para o Vietname ou para a China.

Na manhã em que Amália viu o bilhete que o investigador das energias estruturantes da personalidade deixou à tia, teve a tentação de o rasgar, por ele não se ter despedido dela. Resistiu ao impulso. Na verdade, não sentia qualquer afeto pelo vietnamita, tinha vivido apenas uma espécie de jogo, ele fora o brinquedo que ela, no seu devir caprichoso, gostara de experienciar. Também não tinha nenhum sentimento de culpa pelo sofrimento da tia, mas incomodava-a ouvi-la a vaguear de noite pela casa, cheia da ausência do amor e com insónias, que a atormentaram durante vários meses.

A relação entre as duas transformou-se.

Violeta deixou de confiar nela. Embora a desculpasse racionalmente, considerando que a pouca idade atenuava a culpa e que o verdadeiro culpado fora o asiático, não conseguia ter por ela a mesma compreensão e o carinho que tivera antes.

Amália, por seu lado, continuava a gostar da tia e a admirá-la, mas sabia que a antiga cumplicidade desaparecera definitivamente. Pressionada pela intuição do inevitável afastamento daquela que se tornara a sua referência de vida, o seu conforto e proteção, resolveu empenhar-se no estudo das matérias escolares durante as poucas semanas que restavam até ao final do ano letivo. Como tinha grande facilidade de compreensão e de aplicação das aprendizagens e não necessitava de estudar muito, o empenho foi suficiente para conseguir aprovação em todas as disciplinas.

Com dezoito anos e o ensino escolar concluído, Amália pediu à tia alguma liberdade para passear com os amigos finalistas que, entretanto, arranjara no liceu. Violeta gratificou-a com algum dinheiro e permitiu-lhe que chegasse a casa tarde, desde que não fosse depois das duas da manhã. Sabia que tinha de dar autonomia à sobrinha para que esta pudesse sair mais facilmente da sua proteção, libertando-a da promessa que fizera aos outros membros da família quando a tinha trazido para Lisboa.

A mãe de Amália continuava deprimida. Não voltara a dar aulas, porque se encontrava de baixa psiquiátrica. A doença instalara-se nela como um parasita, sugando-lhe as energias vitais, consumindo-a impiedosamente durante os dias e as noites, enquanto deambulava pela penumbra da casa ou se estendia vestida sobre a cama. Era uma sobrinha que lhe levava de comer, lavava a roupa, limpava a casa e geria os medicamentos, porque ela deixara de sair de casa, o seu tempo era passado no interior da habitação, dormindo ou olhando através das paredes. A partida do marido, que entretanto falecera de ataque cardíaco, deixara-a sem referência, à mercê do mais completo alheamento. Já não tinha frustrações, porque perdera todos os objetivos e os impulsos da sua motivação eram dirigidos para o irreversível apagamento, para a inevitável desistência. A depressão cingira-se a ela e rodeara-a como a figueira-do-diabo faz às grandes árvores, alimentando-se delas até não restar mais do que um vazio entre as voltas do seu enrolamento constritor.

Amália quase não tinha consciência do existir da mãe. Apagara-a da memória, deixando apenas alguns vestígios insignificantes, como os que restam quando apagamos os traços de giz do quadro negro. Não perguntava pela mãe nem sentia qualquer necessidade de a ver. O afeto secara há muito tempo em relação a todos aqueles por quem o sentira na infância, enquanto o pai permanecera em casa, a mãe estivera lúcida e o mundo fora uma grande promessa.

No caso da irmã, a relação era mais complexa. Por um lado ainda tinha a nostalgia de sentir por ela afinidade e partilha, por outro sentia um amplo abismo a separá-las, um abismo urdido nas traições que Lurdes lhe havia feito para se aliar às freiras do colégio. Não tinha nenhum sentimento determinante em relação a ela, nem desprezo, nem desilusão, nem raiva, tinha apenas um coração cheio de distanciamento mas com alguns lampejos de proximidade quando a assaltavam as memórias da infância. A irmã era como aqueles objetos de decoração que sempre estiveram em nossa casa, desde que nascemos, e se introduziram no nosso hábito, de tal modo que, embora não tenhamos qualquer sentimento positivo claro em relação a eles, bem pelo contrário, impregnam-nos com uma ténue e quase inconsciente vontade de os encontrarmos no local de sempre. São feios, inapropriados, inúteis, anacrónicos, mas reconhecemos que a sua natureza consiste em estarem ali. Não os queremos levar para qualquer outro local da nossa existência mas aceitamo-los no sítio onde sempre estiveram, onde nos habituámos a vê-los. Se nos questionarem sobre a razão pela qual não nos desfazemos deles ficaremos confusos e sem saber dar qualquer resposta. Estão ali e pronto. São como a vida, que se mantém e se transforma e se transmite por uma necessidade que é tão forte como inefável, tão evidente como indiscernível.