A BOCA

16-09-2017 01:00

Aquilo que mais distingue as pessoas é o local onde têm a boca, pois disso depende o movimento das suas almas. Conheci um homem que a tinha nos pés, estacava muitas vezes, como uma árvore centenária, perdendo a linearidade do tempo e saboreando os elementos da terra, outras vezes disparava-se na ambição da distância, correndo sem parar, como se nesse vício da musculatura estivesse a finalidade da existência. Há quem a tenha no coração e se dedique a saborear interminavelmente as emoções que brotam das fisionomias daqueles com quem se cruza — nalguns casos, rumina pacientemente as pequenas dádivas mas noutros engole com voracidade todos os afetos que encontra e nenhum é suficiente, pois nada satisfaz mais do que a paixão. Há pessoas que possuem a boca nos olhos ou num dos outros órgãos dos sentidos e para eles o corpo é um sorvedouro de estímulos, uma explosão de apetites que alimento algum pode esgotar. Quanto a mim, tenho milhões de bocas de todos os formatos e dimensões a viajar pelo infinito que não é meu e em todos os tempos em que nem existo, delicio-me com estrelas e galáxias, remasco deuses e paraísos e tenho uma privação tão monstruosa das coisas que não entendo que é bem possível que um dia a minha boca se volte para mim próprio.