Trajetórias e reflexos

24-04-2015 01:02

Sílvia não desenvolveu o receio de errar nem a vontade de se adaptar. No fundo, tinha o intuito de todos os cientistas: tornar o mundo mais previsível. No entanto, esse desejo era mais prático, mais instintivo, mais dinâmico. Não possuía qualquer intenção de compreender o funcionamento da realidade, queria apenas que esta se comportasse da forma que ela desejava, que evoluísse de acordo com os seus gostos, que se acomodasse à sua ordem. O mundo não precisava de ser útil, mas apenas seguro e lúdico, capaz de estimular boas sensações. Por isso as próprias pessoas tiveram de se adequar a ela, de se enquadrar nos seus esquemas mentais simplificadores.

Que estranhos prazeres enchiam a alma de Sílvia quando se alimentava de reflexos e de cores! Talvez o poder da luz a impregnasse, a mesma luz que muitos textos sagrados proclamam como início do tempo e da transformação. Porém, ao contrário do que está descrito na bíblia, para ela o verbo não acompanhou a luz. Os anos correram e a boca permaneceu muda. Nunca falou, a não ser com o corpo. A garganta jamais articulou fonemas, construindo as palavras e as frases com que as pessoas enchem o tempo e o espaço, julgando, talvez ilusoriamente, que não existe outra linguagem tão digna e rica. Todavia, Sílvia não atribuía qualquer valor às palavras, nem pensava nelas, não tinha necessidade de fonemas, monemas, semantemas ou qualquer outra chafurdice mental com que nos atafulhamos de equívocos e de problemas. Pensava sem palavras, era um pensamento muito mais amplo e volitivo.

Gostava de ficar horas a receber os estímulos de cor dos objetos brilhantes e refletores, virando-os e revirando-os cuidadosamente, como os provadores de vinhos ou os cozinheiros excelentes se querem apropriar das moléculas das suas preferências aromáticas e gustativas.

Apenas abandonava o prazer da perceção dos reflexos para corrigir o movimento ou a posição das pessoas ou dos objetos. Sabia que tinha de estar sempre atenta às trajetórias dos seres humanos, porque eles saíam facilmente da ordem natural e, ao fazerem-no, tornavam-se desagradáveis, enchiam a alma com sensações de absurdo. Por isso ela permanecia vigilante, desenvolvendo a competência para essas duas tarefas absorventes da sua vida: a perceção das cores e dos brilhos e o controlo da ordem das movimentações.

Extrato de PAREM DE RESPIRAR, QUERO DORMIR.

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