a verdade

11-08-2022 05:43

a verdade

é o devaneio dos seres que perderam o norte

e atiram glaciares para o fogo do corpo

é o sacerdote que azedou na vida

e fornica ovelhas com os textos sagrados

é o palhaço a rir masturbações

e o farsante a vomitar jurisprudência

e o arquitecto a dar peidos de luz

e o sábio a ejacular provérbios

foi isto que me ensinou um viajante

que tinha um dedo do tamanho de tudo

a indicar que nada era correcto

e a apontar uma culpa medonha e universal

que alastrava e corrompia o mundo

uma culpa dos homens descentrados

que fugiam

como galinhas

da coragem da vida

encontrando protecção no papo das rapinas

 

o sábio mais verdadeiro que ouvi

era um oximoro concreto

do mais abstracto que podia existir

tinha mil pernas como qualquer  licranço

e todas elas se ensarilhavam

e andavam para sítio nenhum

porque não existiam

diz-me rapaz onde está a verdade

— sei lá sei lá —

na ponta da vergasta que abrasa a pele

naquilo que não comes

em tudo o que não tens

na vergonha que sentes

na raiva que te cega

no poder que te exalta…

 

a água mais verdadeira é a das lágrimas

porque é concreta e exprime

o que as palavras não dizem

nem podem dizer

porque o reino das palavras não tem pessoas

mas apenas bocas feitas de ouvidos

e ouvidos feitos de bocas

enroscados

como cobras

no veneno da dúvida

diz-me rapaz onde está a verdade

— sei lá, sei lá —

no sono mal dormido

no ódio acumulado

na alegria sem pausa

na angústia insuportável

na coragem de ser

e de não ser

de ter e não ter

de dar e não dar…

 

olha rapaz

passamos o tempo a mastigar sinónimos

que os ácidos da vida não digerem

e o refluxo das frases queima as bocas

somos monstros lôbregos que esgotam

energias

na imagem de um espelho

e se envaidecem

daquilo que não são

depois da tempestade

vem a lembrança

mas as palavras passam sempre ao lado

a verdade da vida a dois

não está nas palavras

mas na acumulação de silêncios

e rotinas

e risos sem pudor

e ruminações

e raivas…

 

afogo-me

na pura respiração de tudo

e ressuscito

nas incontáveis mortes

que me constroem

diz-me rapaz

onde está a verdade

— sei lá, sei lá!